sexta-feira, 24 de setembro de 2021

PREVENT SENIOR E O KIT COVID – ASPECTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL

 Na CPI da covid, a Prevent Senior está sendo acusada, dentre outros atos ilícitos, como alterar o CID de pacientes falecidos e de promover tratamentos experimentais sem o consentimento dos pacientes, de ter pressionado profissionais e pacientes a utilizar remédios do kit covid (que inclui a hidroxicloroquina).[1]

Do ponto de vista dos beneficiários da Prevent Senior que foram atendidos pelos hospitais credenciados da referida operadora, pode esta ser responsabilizada na esfera cível pela prescrição em massa do kit covid, mais especificamente da hidroxicloroquina?

Independentemente do que for apurado na CPI da covid, é possível visualizar alguns cenários em que a operadora pode ser responsabilizada a indenizar os beneficiários.

Prescrição de hidroxicloroquina

O Parecer CFM nº 4/2020, trata do uso da cloroquina e hidroxicloroquina, em   condições   excepcionais, para o tratamento da covid, e dos requisitos a serem observados na sua prescrição:[2]

- fica ao critério do médico assistente;

- precisa ser em decisão compartilhada após informar o paciente sobre os efeitos colaterais, riscos e sobre a inexistência de comprovação de eficácia desses medicamentos para a covid;

- é necessário o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos seus familiares, que se dá por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (o Termo de Consentimento é de suma importância, inclusive porque se trata de uso de medicamento off label, ou seja, receitado para tratar uma patologia distinta daquela para o qual foi registrado na ANVISA).

Estes são os requisitos que o médico deve seguir para não cometer infração ética ao prescrever a hidroxicloroquina.

Da responsabilidade civil pela prescrição da hidroxicloroquina

Feito este esclarecimento inicial, traçamos alguns cenários em que a operadora de plano de saúde pode ser responsabilizada em ações indenizatórias na esfera cível que venham a ser propostas por beneficiários ou seus familiares, como decorrência da política adotada pela mesma de distribuição em massa de hidroxicloroquina.

1 – Prescrição de hidroxicloroquina sem o termo de consentimento do beneficiário, caso este venha a sofrer danos decorrentes dos efeitos colaterais do medicamento.

Conforme exposto acima, por se tratar de medicamento off label, o médico, ao prescrever a hidroxicloroquina no tratamento da covid, deve obter o termo de consentimento livre e esclarecido do beneficiário, por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido devidamente assinado.

Mas não basta ao médico apenas colher a assinatura do paciente no referido termo; deve, antes disso, orientá-lo e informá-lo sobre os riscos, consequências e efeitos colaterais que possam ocorrer da ministração de hidroxicloroquina em tal circunstância, em observâncias às normas éticas do CFM e do Código de Defesa do Consumidor, que prevê expressamente o dever de informação (artigo 6º, III)[3].

O próprio Parecer CFM nº 4/2020 dispõe expressamente que a prescrição da hidroxicloroquina deve se dar “em decisão compartilhada com o paciente, sendo ele obrigado a relatar ao doente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID 19, explicando os efeitos colaterais possíveis”.

Previsto como o primeiro artigo do capítulo sobre direitos humanos do Código de Ética Médica, o consentimento do paciente possui dois pilares fundamentais: o direito à informação e a autonomia do paciente.

Dessa forma, o consentimento do paciente somente será válido se as informações e os esclarecimentos prestados pelo médico forem adequados, pois somente dessa forma o paciente poderá exercer com soberania o seu direito de autonomia.

A ausência de consentimento, ou aquele deficientemente prestado, traz a presunção de que o procedimento se realizou sem a concordância do paciente. E se este procedimento causar algum dano ao paciente, o médico, a operadora e o hospital credenciado poderão responder civilmente. Este dano não necessita ser oriundo de erro médico, podendo ser decorrência dos possíveis riscos inerentes a determinado procedimento, devendo-se verificar o nexo causal entra a omissão de informação/ausência de consentimento e o dano.

2 – Prescrição de hidroxicloroquina sem a observância das contraindicações e das comorbidades do paciente caso este venha a sofrer danos decorrentes de efeitos colaterais, mesmo com a obtenção do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Como é sabido, a hidroxicloroquina possui uma série de cuidados, advertências, contraindicações e interações medicamentosas que devem ser observadas pelo médico ao prescrevê-la.[4]

Ao prescrever a hidroxicloroquina, caso o médico não se atente a estas advertências, contraindicações e interações medicamentosas em detrimento de eventuais comorbidades do paciente que restrinjam a sua ministração, caso este sofra algum dano restará configurada a responsabilidade civil e o dever de indenizar, vez que se trata de erro médico.

É importante observar que neste caso o Termo de consentimento não serve como salvo-conduto de isenção de responsabilidade por erros médicos.  

3 - Deixar de internar o paciente, prescrever o kit covid e mandá-lo de volta para casa.

Diante da política adotada pelas operadoras de evitar custos com os tratamentos dos beneficiários, não é difícil imaginar que essa situação possa ocorrer: o paciente chega ao hospital com covid, com quadro clínico sugestivo de internação, mas o médico assistente apenas prescreve o kit covid e o manda de volta para casa.

Passado algum tempo, os medicamentos do kit não surtem efeito, o paciente piora, volta ao hospital e é internado, muitas vezes em estado grave. Ora, se o quadro apresentado anteriormente pelo paciente demandava internação, constata-se a ocorrência de negligência do médico que apenas prescreveu o kit covid e não indicou a internação.

Nas três hipóteses elencadas acima a responsabilidade que recai sobre a operadora de plano de saúde e sobre os hospitais credenciados é a objetiva prevista no Código de Defesa do Consumidor. Entretanto, a maior dificuldade que o beneficiário terá para ingressar com ação indenizatória será demonstrar a existência de nexo causal entre a prescrição da hidroxicloroquina e o dano sofrido, sendo necessária a análise de prontuários e documentação médica para tanto.


[1]A Prevent Senior é acusada de ter pressionado profissionais e pacientes a utilizar remédios do kit covid. A empresa estaria, segundo relato do senador Humberto Costa, promovendo ainda tratamentos experimentais sem o consentimento de pacientes.

‘Recebi aqui uma correspondência, que é cópia de um processo que está sendo movido por um grupo de profissionais médicos ligados à rede Prevent Sênior, em que formalizaram uma denúncia contra essa instituição, por conta da política de coerção que foi assumida por essa direção em termos de orientações aos profissionais médicos, para adotarem aquelas orientações do chamado tratamento precoce. Inclusive, aqueles que, em algum momento, se recusaram a implementar essas medidas foram demitidos’, disse Costa na CPI em 26 de agosto. (...)

"Uma das coisas que o hospital orientava era que os pacientes e os seus familiares não tivessem conhecimento de que essa experiência estava sendo feita, que não tivessem conhecimento de que estavam sendo administrados esses medicamentos. A informação que se tem é que isso foi um acerto entre a direção do hospital e o governo federal, contra aquelas orientações que havia do Ministério da Saúde, no período do ministro Mandetta", disse Costa.”

 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/09/22/diretor-da-prevent-senior-presta-depoimento-sob-pressao-apos-faltar-a-cpi.htm?cmpid=copiaecola

 [2] https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2020/4

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

HOME CARE - BENEFÍCIOS AO PACIENTE

Em muitos casos o home care apresenta inúmeros benefícios para o paciente, ainda mais no atual momento de pandemia que vivenciamos.

De acordo com a RDC nº 11/2006[1], a internação domiciliar, também conhecida como home care, pode ser definida como o “conjunto de atividades prestadas no domicílio, caracterizadas pela atenção em tempo integral ao paciente com quadro clínico mais complexo e com necessidade de tecnologia especializada”. Ou seja, trata-se de um desdobramento da internação hospitalar.

O doutrinador Daniel Macedo cita os seguintes benefícios do home care:

- cuidado do paciente em seu domicílio ou de seus familiares, conferindo-lhe maior humanização no atendimento;

- redução dos custos assistenciais caracterizados pela não – utilização da infraestrutura hospitalar;

- possibilidade de eleição de pacientes abrangidos por este benefício, poupando-os dos agravos decorrentes de internação prolongada, sofrendo menores riscos de reinternações e de contrair infecções e doenças hospitalares[2].

Segundo o Ministério da Saúde, a atenção domiciliar proporcionada ao paciente evita hospitalizações desnecessárias e diminui o risco de infecções, além de melhorar a gestão dos leitos hospitalares e o uso dos recursos, desafogando a superlotação de serviços de urgência e de emergência.

É importante fazer a distinção entre internação domiciliar (home care) e assistência domiciliar, sendo esta definida como o “conjunto de atividades de caráter ambulatorial, programadas e continuadas desenvolvidas em domicílio”, cujo entendimento jurisprudencial majoritário exige previsão contratual para ser custeada pelo plano de saúde do beneficiário.

A ANS, cujo posicionamento vem sendo cada vez mais favorável às operadoras de plano de saúde em detrimento dos beneficiários, emitiu o parecer técnico 05/2018, desfavorável ao custeio do home care pelos planos de saúde.

Entretanto, o entendimento jurisprudencial majoritário é no sentido de que caso o beneficiário possua o plano referência, ou de segmentação hospitalar, o home care deve sim ser coberto pela operadora de plano de saúde.

Nesse sentido, vale ressaltar a Súmula 90 do TJ/SP, segundo a qual “havendo expressa indicação médica para a utilização dos serviços de home care, revela-se abusiva a cláusula de exclusão inserida na avença, que não pode prevalecer”.

A Resolução n. 1.668/2003 do Conselho Federal de Medicina[3] dispõe sobre normas técnicas necessárias à assistência domiciliar de paciente, merecendo destaque o critério para eleição do paciente a ser contemplado pelo sistema de assistência domiciliar, que deve ser obrigatoriamente médico e baseado nas suas condições clínicas.

O STJ, por meio de julgado proferido pela Terceira Turma, acabou por delinear outros parâmetros que vêm sendo adotados pelos Tribunais Estaduais na concessão do home care.


[2] Macedo, Daniel. Planos de Saúde e a Tutela Judicial de Direitos: Teoria e Prática (p. 250). Saraiva Jur.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

O QUE PODEMOS EXTRAIR DA MATÉRIA VEICULADA NO FANTÁSTICO SOBRE ERRO MÉDICO - CUIDADOS NA ALTA E NO PÓS-OPERATÓRIO

No dia 05/09/2021 foi veiculada no programa “Fantástico” a matéria “Paciente fica cega após cirurgia e acusa médico: 'Tirou minha vida, não só minha visão”.

A matéria conta a história de uma paciente que ficou cega após a realização de uma cirurgia plástica (abdominoplastia e lipoescultura).

A relação entre a cirurgia realizada e a cegueira causada à paciente teria sido um quadro de anemia severa e pressão baixa ocasionadas pela perda de sangue, que desencadearam uma “neuropatia óptica isquêmica", uma lesão dos nervos ópticos causada pela obstrução do suprimento de sangue.

Esse quadro teria se agravado pela alta precipitada da paciente, que apresentava sinais vitais que deveriam ter sido investigados. Além disso, a paciente teria feito contato com o médico após se sentir mal, mas este demorou muito para retornar e não teria dado a atenção devida.

Esta matéria chama a atenção para três pontos que devem ser observados na realização do atendimento médico.

1 – Em determinado momento da matéria, é mencionado que o médico realizava cirurgias plásticas em “linha de produção”. É inegável que a prática da medicina passou por grandes transformações, decorrentes dos avanços tecnológicos e do modelo empresarial adotado por hospitais e clínicas.

Mesmo com todas essas mudanças, o médico deve estar atento ao número de consultas e procedimentos que realiza, de modo que não atrapalhem a qualidade dos serviços prestados com os habituais cuidados pré e pós-operatórios, não expondo os pacientes a riscos e resguardando a si mesmo.

Inclusive, consta no Código de Ética Médica ser direito do médico “decidir, em qualquer circunstância, levando em consideração sua experiência e capacidade profissional, o tempo a ser dedicado ao paciente, evitando que o acúmulo de encargos ou de consultas venha a prejudicá-lo[1].

2 - É importante que o médico se atente ao estado de saúde do paciente antes de conceder alta. Uma eventual complicação no quadro de saúde do paciente que tenha relação com alta médica precipitada pode implicar na condenação do médico em ação indenizatória na esfera cível e em processo ético-profissional, desde que seja comprovado o nexo causal entre a alta precipitada e o dano sofrido pelo paciente.

No caso de alta a pedido cabem algumas breves considerações. O Parecer CRM/MS 07/2018 prevê os cuidados que se deve ter nos casos de alta a pedido, contrário à indicação médica: A recusa deva ser bem documentada; o mais indicado é o termo "ALTA A PEDIDO CONTRA A INDICAÇÃO DO MÉDICO", deve constar dados gerais do paciente e se for o caso de seu responsável legal, constar que foi devidamente informado e teve todas as suas dúvidas esclarecidas, que compreendeu a recomendação médica e a necessidade de permanência na unidade de saúde, estando ciente de seus riscos e benefícios; assumindo pessoal e individualmente todas as consequências e responsabilidade da sua recusa; e que tal recusa não impede o paciente de voltar a recorrer à mesma instituição.

3 - Os cuidados no pós-operatório também requerem atenção do médico, que deve orientar o paciente e agir com diligência caso ocorra alguma piora ou complicação no seu estado de saúde. Não é demais lembrar que a prestação de serviço médico também engloba cuidados pós-operatórios, dos quais o profissional da saúde não pode se omitir caso o paciente entre em contato para relatar uma piora que requeira providência médica.

Nos dizeres de Miguel Kfouri Neto:

Outro problema frequente nas intervenções de menor porte é a alta demasiadamente rápida, sem se levar em consideração a possível ocorrência de eventos pós-operatórios. Narra-se um caso em que o paciente foi internado com diagnóstico de faringite viral e desgarro muscular. No segundo dia, não houve alteração. No terceiro dia deu-se alta ao paciente, que se reinternou, no quarto dia, noutro hospital, com evolução amplamente desfavorável. O tribunal entendeu ter havido precipitação na concessão da alta hospitalar, sem que os médicos verificassem, com maior acuidade, a evolução da doença.[2]


[2] In ebook Responsabilidade Civil do Médico, 2019, Ed. RT, RB-19.2

ENTREVISTA CONCEDIDAAO JORNAL CORREIO DE SALVADOR

  P - Quais são as demandas mais comuns dos clientes que buscam mover ações judiciais, de acordo com sua experiência?   R – As demandas e...