Este é um dos temas mais polêmicos no
Direito da Saúde, e certamente na nossa sociedade como um todo. Fato é que os
frenéticos avanços da ciência médica na área da reprodução humana têm gerado diversos
dilemas éticos.
E nosso ordenamento jurídico, cujo
processo legislativo tramita de forma muito mais lenta do que os avanços
tecnológicos nesse setor, não dispõe de leis específicas que abranjam todas as
possibilidades advindas das técnicas reprodutivas, inexistindo parâmetros
legais prévios para dirimir conflitos.
O que fazer com os embriões
excedentes? São eles pessoas, portadoras de algum tipo de direito de
personalidade, ou coisas? Como fica o direito sucessório e de filiação das
crianças geradas por meio das mais variadas técnicas reprodutivas?
Atualmente o tema é tratado em alguns
artigos da Constituição Federal e do Código Civil, pela Lei de Biossegurança e
pela Lei de Planejamento Familiar. Ademais disso, temos algumas Resoluções do
CFM e Enunciados das Jornadas de Direito Civil.
Direito de personalidade civil do
embrião
Segundo os artigos 1º e 2º do Código
Civil, “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”, sendo
que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei
põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Sobre o termo “concepção”, este é
definido como “ação de gerar ou de ser gerado, através da junção de um
espermatozoide com um óvulo; fecundação”.
O primeiro ponto que gera discussão
aqui é o momento e quando se dá a concepção. Para efeitos legais, pode ser
considerada com a junção de um espermatozoide com um óvulo por meio de técnica
reprodutiva em ambiente externo? Ou apenas quando esta ocorre no útero materno?
Silmara J. A. Chinelatto, ao
discorrer sobre o momento a partir do qual se deve considerar a existência do
nascituro, ressalta a relevância da nidação do ovo no útero, pois só a partir
daí por diante é possível garantir, “em tese, a viabilidade do
desenvolvimento e sobrevida do ovo, que se transformará em embrião e feto”.
Interessante observar que a obra em comento foi lançada em 2.000, podendo haver
desatualizações com relação ao estágio científico atual sobre a viabilidade de
sobrevida do embrião antes que seja implantado no útero, em casos de reprodução
assistida.
A Resolução CFM 2.168/2017, que trata
de normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, discorre
que “o tempo máximo de desenvolvimento de embriões in vitro será de até 14
dias”, e que os embriões criopreservados e abandonados por três anos ou
mais poderão ser descartados.
Mas a legislação brasileira não traz
de forma específica se o embrião gerado por técnicas de reprodução assistida in
vitro tem direito à personalidade. Também não há consenso na doutrina sobre
esse ponto, em que poucos doutrinadores ousam se debruçar.
Talvez a contribuição mais expressiva
sobre o tema tenha sido do STF, ao julgar a ADIN-DF 3.510, tendo como Relator o
Ministro Ayres Britto, em 28/05/2010. Ao tratar da legalidade na pesquisa com
células-tronco, o acórdão discorre sobre o direito de personalidade do embrião:
“O Magno Texto Federal não dispõe
sobre o início da vida humana ou o preciso instante em que ela começa. Não faz
de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da
vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva (teoria
"natalista", em contraposição às teorias "concepcionista"
ou da "personalidade condicional"). E quando se reporta a
"direitos da pessoa humana" e até dos "direitos e garantias
individuais" como cláusula pétrea está falando de direitos e garantias do
indivíduo-pessoa, que se faz destinatário dos direitos fundamentais" à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade", entre outros
direitos e garantias igualmente distinguidos com o timbre da fundamentalidade
(como direito à saúde e ao planejamento familiar). Mutismo constitucional
hermeneuticamente significante de transpasse de podernormativo para a
legislação ordinária. A potencialidade de algo para se tornar pessoa humana já
é meritória o bastante para acobertá-la, infraconstitucionalmente, contra
tentativas levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica.
Mas as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto
e a pessoa humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana embrionária,
mas embrião de pessoa humana. O embrião referido na Lei de Biossegurança ("in
vitro" apenas) não é uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova,
porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar as primeiras terminações
nervosas, sem as quais o ser humano não tem factibilidade como projeto de vida
autônoma e irrepetível. O Direito infraconstitucional protege por modo
variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da
vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito
comum. O embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no
sentido biográfico a que se refere a Constituição.”
Utilização de embriões para pesquisa
A Lei de Biossegurança permite, para
fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas
de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no
respectivo procedimento.
Referida lei define células-tronco
embrionárias como “células de embrião que apresentam a capacidade de se
transformar em células de qualquer tecido de um organismo”.
Em seu artigo 5º, trata das condições
para a utilização de células-tronco embrionárias em pesquisa: devem provir de
embriões inviáveis, ou congelados há três anos ou mais, sendo necessário o
consentimento dos genitores.
Embriões excedentários
A questão do descarte de embriões
excedentários é uma questão muito delicada na reprodução humana assistida
quando da fertilização in vitro. Genival Veloso de França traz como sugestão a
adoção de embriões excedentários por outros casais:
“É parte do processo de fertilização
por meio assistido in vitro que se obtenha alguns óvulos para fecundação com o
espermatozoide, gerando daí os embriões que serão implantados no útero da
mulher. Aqueles que não são implantados são chamados de embriões
supranumerários e são criopreservados, com a finalidade de serem implantados
numa futura tentativa de gravidez.
(...)
Uma proposta respeitável seria a
adoção de pré-embriões e não a sua simples doação. (...) Acreditamos ser
necessário a estipulação de normas na adoção pré-natal de embriões muito
próximas das existentes para as adoções de crianças nascidas. Antes de tudo,
como primeira cláusula, o consentimento esclarecido dos pais, pessoas capazes
civilmente e aptas para entender e considerar razoavelmente o ato que se
propõe, isento de coação, influência ou indução. Não pode ser obtido este consentimento
através de uma simples assinatura ou de uma leitura apressada em textos
minúsculos de formulários. Mas por meio de linguagem acessível ao seu nível de
convencimento e compreensão (princípio da informação adequada).”
Direitos sucessórios e de filiação
No que tange aos direitos sucessórios
nos casos oriundos de reprodução assistida, o Código Civil traz alguns
dispositivos que se são aplicados ao tema:
“Art. 1.593. O parentesco é natural
ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.”
“Art. 1.597. Presumem-se concebidos
na constância do casamento os filhos:
(...)
III - havidos por fecundação
artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo,
quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial
homóloga;
V - havidos por inseminação
artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.”
“Art. 1.799. Na sucessão
testamentária podem ainda ser chamados a suceder:
I - os filhos, ainda não concebidos,
de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a
sucessão;”
Portanto, temos que o Código Civil
admite a filiação por meio de fecundação artificial, e, consequentemente, o
direito à sucessão, se tais filhos são concebidos na constância do casamento
(CC 1597 caput). Admite também a sucessão testamentária para filhos não concebidos.
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de
Andrade Nery tratam das incertezas jurídicas oriundas de “filhos advindos de
doações de óvulos e sêmen de quem não se apresenta juridicamente como seus pais”,
e da “filiação que decorre da popularmente chamada “barriga de aluguel”.
Alegam que a mera prova de filiação biológica já não é suficiente para
determinar a filiação:
“A introdução do termo “outra origem”
no CC 1593 inaugurou a cláusula geral da afetividade na relação de parentesco
em linha reta e trouxe para o espaço do estado civil familiar, a insegurança
gerada por múltiplas situações de fato que não se podia supor que ensejasse
causa de procriação.
(...) a hipótese de filhos havidos
por concepção artificial homóloga (reprodução assistida com o material genético
do casal, o que pressupõe um casal heterossexual), ou por concepção artificial
heteróloga (reprodução assistida com o material genético de um ou nenhum dos
futuros pais). Ressalte-se que a abertura do CC 1593 para a possibilidade de
filiação por meio de fecundação artificial homóloga e heteróloga, permite
numerosas possibilidades de filiação que jamais poderiam ter sido previstas
quando da elaboração da lei. Nem todas as numerosas práticas dessas diversas
possibilidades de procriação humana artificial, encontram resguardo em nosso
sistema jurídico.”
Como solução, citam o critério da
afetividade para análise de investigação de paternidade.
Dessa forma, diante da inexistência
de leis que tratem todas as diversas questões envolvendo a reprodução
assistida, os Enunciados do Conselho Federal de Justiça e da I Jornada de
Direito da Saúde do CNJ, e as Resoluções do CFM podem auxiliar na busca de
soluções para conflitos judiciais.
Vejamos:
Vínculo parental socioafetivo:
- I Jornada de Direito Civil –
Enunciado 103:
O Código Civil reconhece, no art.
1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção,
acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental
proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente
ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da
paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.
- I Jornada de Direito Civil -
Enunciado 104:
No âmbito das técnicas de reprodução
assistida envolvendo o emprego de material fecundante de terceiros, o
pressuposto fático da relação sexual é substituído pela vontade (ou
eventualmente pelo risco da situação jurídica matrimonial) juridicamente
qualificada, gerando presunção absoluta ou relativa de paternidade no que tange
ao marido da mãe da criança concebida, dependendo da manifestação expressa (ou
implícita) da vontade no curso do casamento.
- V Jornada de Direito Civil -
Enunciado 519:
O reconhecimento judicial do vínculo
de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação
entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza
efeitos pessoais e patrimoniais.
Filiação:
- I Jornada de Direito Civil -
Enunciado 111:
A adoção e a reprodução assistida
heteróloga atribuem a condição de filho ao adotado e à criança resultante de
técnica conceptiva heteróloga; porém, enquanto na adoção haverá o desligamento
dos vínculos entre o adotado e seus parentes consangüíneos, na reprodução
assistida heteróloga sequer será estabelecido o vínculo de parentesco entre a
criança e o doador do material fecundante.
- III Jornada de Direito Civil -
Enunciado 258:
Não cabe a ação prevista no art.
1.601 do Código Civil se a filiação tiver origem em procriação assistida
heteróloga, autorizada pelo marido nos termos do inc. V do art. 1.597, cuja
paternidade configura presunção absoluta.
- Enunciado CNJ 39:
O estado de filiação não decorre
apenas do vínculo genético, incluindo a reprodução assistida com material
genético de terceiro, derivando da manifestação inequívoca de vontade da parte.
- Enunciado CNJ 40:
É admissível, no registro de
nascimento de indivíduo gerado por reprodução assistida, a inclusão do nome de
duas pessoas do mesmo sexo, como pais.
Nesse ponto é importante ressaltar
que a Resolução CFM nº 2.168/2017 ressalta de modo significativo a necessidade
de se manter em sigilo as identidades de doadores e de receptores de material
genético (óvulos e embriões), com o nítido propósito de evitar futuras
implicações legais/judiciais referentes a filiação da criança gerada por meio
de técnicas de reprodução assistida.
Regras para utilização do embrião:
- I Jornada de Direito Civil - Enunciado
107:
Finda a sociedade conjugal, na forma
do art. 1.571, a regra do inc. IV somente poderá ser aplicada se houver
autorização prévia, por escrito, dos ex-cônjuges para a utilização dos embriões
excedentários, só podendo ser revogada até o início do procedimento de
implantação desses embriões.
Vale ressaltar algumas normas
técnicas da Resolução CFM nº 2.168/2017 atinentes a utilização das técnicas de
reprodução assistida:
- é vedada se implicar risco grave de
saúde para o(a) paciente ou o possível descendente;
- a idade máxima das candidatas à
gestação por técnicas de RA é de 50 anos, admitindo exceções baseadas em
critérios técnicos e científicos, fundamentados pelo médico responsável;
- o consentimento livre e esclarecido
será obrigatório para todos os pacientes submetidos às técnicas de RA.
Reprodução assistida post mortem
e sucessão:
- I Jornada de Direito Civil -
Enunciado 106:
Para que seja presumida a paternidade
do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das
técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja na
condição de viúva, sendo obrigatória, ainda, a autorização escrita do marido
para que se utilize seu material genético após sua morte.
A Resolução CFM nº 2.168/2017 reforça
a necessidade de que os pacientes manifestem seu consentimento sobre o destino
a ser dado aos embriões criopreservados em diversas hipóteses, dentre elas a
morte de um dos cônjuges, a fim de evitar futuras discussões judiciais:
No momento da criopreservação, os
pacientes devem manifestar sua vontade, por escrito, quanto ao destino a ser
dado aos embriões criopreservados em caso de divórcio ou dissolução de união
estável, doenças graves ou falecimento de um deles ou de ambos, e quando
desejam doá-los.
(...)
É permitida a reprodução assistida
post-mortem desde que haja autorização prévia específica do(a) falecido(a) para
o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente.
Segundo o artigo 1.798 do Código
Civil, “legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no
momento da abertura da sucessão”. Diante da aplicação literal deste
dispositivo, não seria herdeiro o filho resultante de reprodução assistida que
não tenha sido concebido até a abertura da sucessão.
Segundo a opinião de Mauro Antonini,
“parece possível sustentar, no entanto, que, se o marido ou companheiro
tiver deixado anuência expressa, consentido na inseminação post mortem,
estabelece-se o vínculo de paternidade e, por extensão, o direito sucessório.
(...) Quanto ao óbice de tal possibilidade gerar insegurança jurídica por tempo
indefinido, é de se estabelecer como limite, para petição de herança, o prazo
de dez anos da abertura da sucessão”.
Em tais casos, entretanto, pode
ocorrer a sucessão testamentária, nos termos dos artigos 1.799, inciso I e
1.800, que possibilita a inclusão dos “filhos, ainda não concebidos, de
pessoas indicadas pelo testador”, desde que sejam concebidos no prazo de
dois anos após a abertura da sucessão.
Gestação de substituição (cessão
temporária do útero):
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de
Andrade Nery trazem interessante discussão sobre problemas com a filiação que
podem ocorrem na gestação de substituição:
“o CC 1597 prevê as situações de
filiação decorrentes de inseminação homóloga e heteróloga, deixando de
contemplar, no entanto, a questão da mãe sub-rogada. Destarte, um casal
que recorra a essa técnica não encontra amparo legal para os problemas de
filiação dela decorrentes.
(...)
“No caso de casais não casados, a
adoção por parte dos dois não é possível. O problema maior decorre, no entanto,
de uma gravidez de aluguel em que a mulher que dá à luz é casada. Neste
caso, a criança é considerada filho dos pais de aluguel, e não dos pais
biológicos. Assim, como no direito brasileiro, o pai biológico pode impugnar a
declaração de paternidade. Porém, para que obtenha a guarda da criança
juntamente com sua esposa (e, muitas vezes, mãe biológica da criança), é
necessário que deem início ao processo de adoção, o que somente poderá
acontecer mediante autorização dos pais de aluguel, que juridicamente são os
verdadeiros pais da criança.”
(...)
O contrato de gestação de
substituição é lícito? (...) deverá o juiz, quando confrontado por uma das
partes que pretenda descumprir os termos anteriormente acordados, aplicar o
pacta sunt servanda (o contrato faz lei entre as partes)? Mesmo que as partes
assim tenham acordado, é possível renunciar a direito fundamental?
Mais uma vez, buscamos contornar
estas situações por meio dos Enunciados e das Resoluções do CFM:
- Enunciado CNJ 45:
Nas hipóteses de reprodução humana
assistida, nos casos de gestação de substituição, a determinação do vínculo de
filiação deve contemplar os autores do projeto parental, que promoveram o
procedimento.
- Resolução CFM nº 2.168/2017:
A cedente temporária do útero deve pertencer
à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau
(...). Demais casos estão sujeitos à autorização do Conselho Regional de
Medicina.
Além disso, a Resolução dispõe sobre a
necessidade dos seguintes documentos que dizem respeito à filiação: i) Termo de
consentimento livre e
esclarecido assinado pelos
pacientes e pela cedente
temporária do útero, contemplando aspectos legais da
filiação, ii) Termo de Compromisso entre o(s) paciente(s) e a cedente
temporária do útero (que receberá o
embrião em seu útero),
estabelecendo claramente a
questão da filiação da criança, e iii) Compromisso do
registro civil da
criança pelos pacientes
(pai, mãe ou
pais genéticos), devendo esta documentação ser providenciada durante a
gravidez.